quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Cena 9 - Por que não, sem começo nem fim?

(Helen de costas, sentada, escrevendo, como na Cena 1. Está alheia a tudo que acontece ao seu redor no quarto, não percebe entre frestas da cortina, a manhã chegando.)

Helen:
"E aqui estão as minhas memórias. Ganchos de lembranças sem começo e sem fim. É o período de uma vida afogada em saudade e sufocada pelo medo de seguir só. 

(Enquanto Helen escreve o capítulo final de seu livro de memórias, Helen Jovem, com seus 15 anos, entra em cena, dirige-se à gaiola do pássaro, colocando-a exatamente na fonte de luz. Tira o pano que o cobre e abre a porta da gaiola. Nada acontece.) 

Helen:
Em mim, resta a sufocante poeira deste quarto. Me sobra apenas falar com fantasmas, ouvir risos e questionamentos de um passado tão presente, tão pulsante... um sopro de vida em tempos asfixiantes. 

(Helen Jovem, com seus 20 e poucos anos, também em cena, abre gavetas e guarda roupas na mala de viagem. Fecha a mala, leva até a porta e abre a porta. Nada acontece.) 

Helen:
E é aqui que me decido. É neste meu presente, muito acreditado morto e sombreado por memórias mais vivas que minha própria existência no aqui e agora. Por hora decido pelo ponto final deste livro. E esperar que amanheça."

(Escurece. Ouve-se barulho de duas portas se fechando: uma de ferro e outra de madeira.)



quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Cena 8 - Do que nos impede de estarmos livres

(Helen, de costas, sentada na cama. Aos poucos enxergamos Pai, o fantasma, segurando as mãos de Helen.)

Pai, o fantasma
"O conceito de liberdade está intrinsecamente ligado ao poder que cada indivíduo tem de escolher seus caminhos e tomar decisões, sem que algum poder maior, seja ele de ordem política, econômica, social ou moral, o oprima ou o impeça de fazê-lo."  

( Helen Jovem, à mesa, lendo os originais do livro do Pai. O passado é revelado mais uma vez aos olhos de Helen Adulta.

Helen Jovem:
Não entendo! Isso é utópico. Pai? Você se considera um homem livre?

(Silêncio)


Helen Jovem:
Você é livre, pai?

Pai:
Eu quero ser. Quebrar barreiras construídas com medos e frustrações, atravessar ondas escuras de sonhos ainda não realizados, transcender montanhas de pensamentos aprisionados. O que temos hoje é...

Helen Jovem:
O contrário disso.

Pai:
Mas se, nesses momentos de escuridão e aprisionamento do tempo... se conseguirmos preservar internamente nossa natureza libertária, nossos pensamentos alados, desejos que não dormem.., quando o momento chegasse...  

Helen Jovem:
Seríamos livres?

Pai:
A questão não é SER livre, e sim ESTAR livre. É transitório. O mais irônico da história é que SER alguma coisa, é exatamente o que nos impede de nos modificarmos, é um gesso que nos paralisa, é a casca do ovo ao nosso redor...

Helen Jovem:
Já o conceito de ESTAR sendo alguma coisa, naquele instante apenas, nos impulsiona para mudanças, rumando para um caminho de escolhas livres. É isso?

Pai: 
Podemos tentar descobrir. O que temos a perder?

Helen Jovem
(sentando na cama, ao lado de Helen Adulta, jogando os manuscritos do livro sobre a cama)
Tudo isso!

Pai:
Tudo isso, o que? Papéis rabiscados com nossas idéias? Elas ficam mais poderosas quando as levamos em nossas mentes. Livros empoeirados numa estante quase morta? Cortinas delimitando até onde nosso olhar pode ir? Sentiria mesmo falta de tudo isso?

Helen Jovem:
Kinara.

Pai:
Ser livre e Estar livre, Helen. Lembre-se da diferença. Ele É livre por natureza. Neste momento, Ele apenas ESTÁ sob nossos cuidados para se fortificar. Mas em breve ele mudará de estado, estará livre e escolherá ir ou ficar. Voar explorando o mundo, e se quiser, voltar para contar o que viu.   

Helen Jovem:
Papéis, livros, cortinas ficariam para trás e ele seguiria...

Pai:
E quando ele se libertar, você conseguiria seguir também?

(Helen do presente com os originais do livro do pai nas mãos, folheia e por fim, os coloca dentro da mala de viagem.)
   

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Cena 7 - Um Voo Sobre as Planícies do Tempo

(Helen está deitada em sua cama, ao lado da mala de viagem aberta e ainda vazia. Apartamento ainda na penumbra.)


Pai, o fantasma
Vamos filha... Se mexa!


(Helen olha em direção da janela, atônita. Lá está o Pai. Ele abre uma parte das cortinas. É noite ainda, algumas luzes vindas de fora iluminam o quarto. Vê-se Helen Jovem, quinze anos, sentada à mesa tomando seu café da manhã, e olhando fixamente para a gaiola do Pássaro ainda pequeno. No mesmo quarto, passado e presente co-habitam)


Pai:
Helen, vai perder mais um dia de aula, parada, olhando esse pássaro? 

Helen Jovem:
Já vou. Coitadinho! Parece tão frágil. Será que algum dia ele vai poder voar, sem alguém para mostrar os primeiros passos? 

Pai: 
Ele nasceu sem que ninguém o ensinasse a quebrar a casca, não é? Mas estaremos aqui, eu e você, para ajudar o pobrezinho. Agora termine seu café. 

Helen Jovem:
Quem me ensinou a andar?

Pai:
Sua mãe... eu... Na verdade você caminhou sozinha. Nós te chamávamos e você vinha. Ou melhor, você tentava vir. Era engraçado, você levantava a cabeça, olhava a gente nos olhos, criava coragem, e vinha. Pernas bambas, corpinho mole, mas caminhava bem. Com coragem e sozinha.

Helen Jovem:
Eu vou ensinar o pássaro a voar!

Pai:
Como?


Helen Jovem:
Quando chegar o momento, quando ele estiver pronto...


Pai:
Helen querida, você pode até ensiná-lo a andar, mas voar...?

Helen Jovem:
Eu vou chamá-lo e ele virá. Assim como vocês fizeram comigo.

Pai:
Certo! Assim será! Imagine o que é voar... ( Pai caminha em direção de Helen do presente, mas sem vê-la ou tocá-la. Senta ao seu lado na cama.) A liberdade de se soltar no ar, flutuar sobre mares e planícies, e depois de tanto se admirar com a beleza do mundo, poder pousar no topo de uma montanha e descansar, sentindo o calor do sol nas suas asas. Imagine...


 Helen Adulta:
Sim.


Pai:
Você gostaria de voar Helen?


Helen Adulta:
Sim... Não suporto mais essa imobilidade, asas retraídas, esse silêncio, a indiferença do tempo que nos separa. Nunca consegui aguentar o peso do tempo que me esmaga... Pai... Qual é o custo das coisas perdidas, das pessoas deixadas pra trás?


(Ouve-se a buzina do ônibus escolar)


Pai:
Agora levante-se e vamos, querida!

Helen Jovem:
Um nome... Falta só um nome pra ele! 

Pai: 
(Abrindo algumas gavetas, procurando um casaco para Helen)
Você conhece a estória de Kinnara, um ser metade pássaro metade homem, que trazia em suas asas o brilho e o calor do sol? Alguns diziam que ele era mensageiro dos deuses, a ligação entre os homens e os seres divinos.

Helen Jovem:
Que nome estranho! Kinnara! Gostei...


(Helen Jovem, pega sua mochila e seu casaco. Na pressa de sair deixa cair seu casaco. Helen Adulta recolhe o casaco do chão, dobra e põe na sua mala de viagem.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Cena 6 - Um bilhete escrito em códigos

(Helen Jovem, porém menos radiante. Limpando o interior da gaiola do pássaro, cortinas do apartamento semi-abertas, deixando um bom feixe de sol entrar, o suficiente para iluminar apenas a gaiola. Tocam a campainha. Helen paraliza. Mais uma vez tocam a campainha. Cobre a gaiola, vai até a janela, olha a rua.)

Homem: (batendo na porta)
Helen? Querida? Abra a porta?

(Silêncio. Helen vai até a porta, mas não abre)

Homem:
Helen? Eu sei que você está aí. Eu... tenho notícias... Abra a porta.

(Helen abre a porta. Homem, o mesmo da primeira cena, porém mais novo, entra. Observa o apartamento.) 

Homem:
Está um pouco escuro aqui. Eu não consigo te ver direito.

(Helen acende um cigarro)

Helen Jovem: 
Estou bem aqui. Esperando as notícias que você me trouxe.

Homem:
Helen... Pequena...  Você está diferente. Quanto tempo...

Helen Jovem:
Dois anos.

Homem:
Seis.

Helen Jovem:
Seis? O tempo é tão... 

Homem:
Você preservou o apartamento! Do mesmo jeito que ele deixou. Incrível! Parece que voltei no... 

Helen Jovem:
Como foi?

Homem:
Helen, ninguém sabe... nem como foi, nem quando foi... Só sabemos que nós o perdemos. Pudemos ver fotos, mas não sabemos onde o corpo foi enterrado.

Helen Jovem:
Quero... vê-lo. 

Homem:
Não vai ser possível. Eu sinto muito. 

Helen Jovem:
Você... era pra você ter ajudado. 

Homem:
Eu fiz tudo que eu pude. Tirei ele do país, mantive contato. Tínhamos até uma certa facilidade para trocar informações. mas algo aconteceu... e nós o perdemos.

Helen Jovem:
Você falava com ele? Esse tempo todo vocês mantinham contato? E você nunca pensou que eu pudesse... Ele me mandou algum recado nesses possíveis contatos? Um bilhete escrito em códigos, sei lá... Alguma... palavra? 

Homem:
Helen... Os originais do livro, você ainda os guarda?

(O pássaro começa a se agitar na gaiola)

Helen Jovem: 
Sim.

Homem:
O que vai fazer com eles?

Helen Jovem:
O que há pra se fazer?

Homem:
Você leu?

Helen Jovem:
Eu sei as idéias do meu pai de cor. Eu vi cada pensamento surgir, cada palavra dele transformada em letra.  

Homem:
Pois você deveria ler. E entender não só o que ele quis ensinar para os outros, mas o que ele espera de você.

(O pássaro cada vez mais agitado)

Helen:
Ele se foi. Ele não espera mais nada de mim. 

Homem:
Você deveria sair desse apartamento. É só isso que eu acho. 

Helen Jovem:
Não. Eu fico. Mais uma vez...

Homem:
Muito bem. Mas se vai ficar, você deveria fazer alguma coisa por ele. (Aponta para a gaiola) E por você. Não se aprende a voar desse jeito.

Cena 5 - Os dias que viraram noite escuras.

(Helen imóvel em seu apartamento observa uma mala de viagem vazia em cima da cama. Gavetas abertas e reviradas, como na cena anterior.)

Helen:
Estava escuro, mas apenas porque as cortinas estavam fechadas. Lá fora fazia o dia mais lindo que já se viu. Talvez o último dia realmente lindo de sua vida. Podia se ouvir as crianças brincando na rua, crianças que há uns dia atrás o acompanhavam nas caminhadas matinais e lhe perguntavam sobre a passagem do tempo, de como o dia virava noite, queriam sempre saber pra onde iriam as coisas quando o mundo ficava escuro. 

(Pega roupas de uma gaveta, dobra gentilmente e coloca em outra gaveta. Repete o mesmo ato várias vezes.) 

Helen:
Crianças curiosas, ele dizia. Ele, por sua vez , perguntava a elas sobre seus sonhos e pesadelos, sobre o doce e o azedo da próxima sobremesa. E depois... sem ele.. elas se acostumaram a passar o tempo acompanhado outra caminhada. Um rastro de formigas pelo corrimão da escada. Em silêncio, sem preguntas. A porta aberta, sem retorno. O cheiro de café na casa... Como se todo açúcar do mundo pudesse amenizar o amargor daquela manhã. Ele tinha ido embora.

(Fecha a mala de viagem vazia sobre a cama.) 

Helen:
Muito cedo, cedo demais pra mim. Não estavamos prontos. Ainda não estou.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Cena 4 - Quando as cortinas se fecham


(Algumas malas na porta de casa e uma mala vazia na cama. Pai fechando as cortinas, vasculhando gavetas, esvaziando-as. Helen Jovem, de costas, como na primeira cena, escrevendo em sua máquina de escrever.)

Helen Joven:
Sem cabimento. Fora de cogitação!

Pai:
Helen, por favor. Temos que ir agora.

Helen Jovem:
Eu não vou! Pai, eu tenho que terminar a minha tese em três dias. Não, acho que três horas. Meu deus, eu já nem sei que dia é hoje.

Pai:
Isso pode esperar. Você pode tentar no próximo ano. Não percebe a gravidade do que está acontecendo ao seu redor?

Helen Jovem: 
Como não? Eu vi a faculdade sendo invadida. Eu percebo que os professores desaparecem da noite pro dia. Claro que eu vejo e sinto tudo. Mas você pai... fugir, exilar-se, sair pelas portas do fundos? Isso não é do seu feitio, não foi o que você me ensinou... E além do mais, não é digno.

Pai:
O que você chama de dignidade eu chamo de ignorância adolescente. Ontem, na universidade, foi o diretor do seu departamento que sumiu. E antes de ser arrastado pelos corredores, os gritos, a aflição, as mentiras quase convincentes ecoavam por toda parte. Os nomes... ele vai dar nomes... Amanhã serei eu. É isso que você quer? 

Helen Jovem:
  Pai, foi só um livro. O que isso tem de tão errado? 

Pai:
Eu disse coisas nesse livro. Abri pequenas frestas para as pessoas olharem um cenário de liberdade, para enxergarem a luz e saberem que é possível voarem para buscar seus próprios Nortes.

Helen Jovem:
Falar sobre como podemos ser livres? Sonhar com o fim de uma era de escuridão e silêncio? Foi isso que você me mostrou a vida inteira, mas você nunca me disse que pra isso teríamos que fugir, nos esconder desse futuro de liberdade e paz. (O pai continua a arrumar as malas, vasculhar gavetas...) E por favor, abra essas cortinas. O pássaro... Você sabe que ele precisa de sol.

Pai:
Não filha, não te mostrei essa parte. Não queria isso pra você, pra nós dois. O fato é que aqui estamos, e aqui decidimos. Vamos Helen, comece a arrumar as malas. 

Helen Jovem:
O pássaro.

Pai:
Abra a gaiola, deixe ele livre. Ele voa e nós partimos.

Helen Jovem:
Não. Não definitivamente não. 

(Ouve-se batidas fortes na porta e gritos para abrir. Ouve-se também o pássaro como se fosse um grito de socorro.)

sábado, 30 de julho de 2011

Cena 3 - Uma fresta contra o tempo paralisado

(Parada na porta, olhos fixos no envelope com a passagem de avião.)

Helen:
Sem cabimento. Fora de cogitação.

(Deixa o envelope em cima da mesa. Vai até a janela. Abre um fresta pequena da cortina pesada. Assiste a partida do carro do visitante. Uma luz forte vinda de fora faz com que ela feche as cortinas novamente e se afaste da janela.)

Helen:
Deixar o livro aqui? É assim que eu devo honrar a sua memória já tão enevoada, tão envelhecida pelo esquecimento do tempo? Eles não percebem? Já não é mais uma questão de fugir ou ser pega. Não se trata mais de ideologias ou certezas.

( Sai e volta com uma gaiola coberta por um pano escuro, o mesmo pano das cortinas do seu apartamento. Abre uma pequena fresta para olhar dentro da gaiola. Ouve-se um canto triste do pássaro.)

Helen:
É uma questão de não conseguir... não poder... não ter mais o que é preciso pra sair. Não há coragem para libertar o que me consome, o que me paralisa. Um escuro que gela os dedos, não consigo abrir... Vejo sombras em florestas imaginárias, existentes apenas na mente de uma criança esquecida na prisão do tempo. Um tempo sem você.  

(Pega novamente o envelope com a passagem, ameaça abri-lo. Desiste.)

Helen
 Não, definitivamente não!

(Joga o envelope com a passagem em cima da cama e de dentro cai um pedaço de papel. Ela lê.)

Helen:
"Ao norte sempre que preciso
Sentido inverso do universo em que existo..."

Pai, o fantasma:
"... e no branco encanto das terras frias
ela, pequena, se encaminha ao topo
ponto de encontro de nós dois."